Pontos Finais - VI/VIII
— Quero um como esse, mas azul marinho. — Ela passa um monte de
tecido amarelo por cima da divisória do provador. O vendedor que nos atende
logo se desmaterializa em busca do pedido.
— Achei que era algo sério.
— E é sério! Quer algo mais sério que isso?
— É só um jantar de família, não a entrega do Goldener Bär.
— Baba se importa muito com esses jantares. Tenho que estar impecável.
— Se você diz...
O vendedor
ressurge, desta vez com um embrulho azul escuro nos braços. Num movimento
rápido, o tecido se espalha pelo ar em direção ao solo. Ele lhe entrega o
vestido e sai rapidamente.
— Preciso de ajuda. — Ò, céus.
— Com o quê?
— Me ajude a abrir aqui. Tá apertado.
— Hannah, isso é atentado ao pudor!
— Não, ezik! Abrir aqui...
Um pedaço da
porta do provador se abre, vejo seu reflexo semidesnudo no espelho. Ela se
queixava do fecho do soutien. Estico a mão e o abro com dois dedos, desarmando
uma bomba em praça pública. Tão logo a peça rosa salta pra frente, ela fecha a
porta do provador de novo.
Estou
suando frio.
Por
que estou suando frio?
— Por que não me contou antes?
— Estava pensando em uma maneira condizente de
te contar isso. — ela passa os dedos na
borda do copo nervosamente.
— Era só contar. Eu sabia que tinha algo de
estranho nisso tudo.
— Ele sumiu. Há muitos anos atrás.
— Sumiu pra onde?
— Meus pais nunca me disseram. Só descobri uma
parte da história há algumas semanas atrás, enquanto procurava algum bloco de
papel no quarto de Baba. Abri uma gaveta e voilà. Uma carta da minha avó,
enviada há sete anos.
— E...?
— Eu não consegui entender a ordem cronológica dos acontecimentos. Tentei
unir o pouco que eu me lembrava com o que a minha vó escreveu.
— Bem. Pode começar.
— Quando eu estava mais ou menos com cinco ou seis anos, Arslan já
estava no primeiro semestre da faculdade. Eu fui filha temporã, você entende.
Eu vivia uma realidade paralela. Um reino infantil onde não havia grandes
preocupações. Timur é nove anos mais velho que eu. Estava numa fase complicada
da adolescência, provavelmente pensava que todos estavam contra ele. Para
piorar, tinha acabado de ser reprovado no primeiro ano do ensino médio. Pela
segunda vez. Era reservado e calado.
— Você se lembra disso tudo?
— Somente algumas coisas. Temos uma vizinha de quarteirão que é turca.
Sempre fora amiga de minha mãe. Apenas liguei os pontos e fui procurá-la em
busca de respostas.
— Muita esperteza de sua parte.
— Enfim — ela continua — Ele se
sentia rejeitado e menos digno de orgulho que o Arslan. Numa noite, Baba
deu-lhe um ultimato: se tornaria alguém responsável ou ele o mandaria para a
Dinamarca, para morar com alguns parentes distantes e estudar.
— Então, já sabemos para onde ele foi.
— Não foi tão simples assim. Queria eu que houvesse sido.
— O que houve, então?
— Eu me lembro dessa noite como se fosse ontem. Eu tinha um quarto só
para mim, Arslan e Timur dividiam o quarto do outro lado do corredor. Era uma
terça-feira chuvosa. Fomos todos dormir, como em uma noite qualquer. Anne se
levantou no meio da noite pra ir ao banheiro, abriu a porta do meu quarto pra
ver se estava tudo bem, isto feito, abriu a porta do quarto deles. Só o Arslan
estava dormindo. A outra cama estava vazia.
— E ela? O que fez?
— Começou a gritar. Ouvi portas se abrindo e fechando. Acordou todo o
quarteirão. Não demorou muito e a polícia estava na nossa porta. Procuramos por
toda a Berlim. Ninguém havia visto ele. Naturalmente, eram três e quarenta e
cinco da manhã de um dia de semana. Dificilmente alguém estaria na rua. Ele
havia planejado tudo.
— E demorou quanto tempo até ter notícias dele?
— A Interpol foi avisada e ele foi dado como desaparecido. Havia uma
grande onda de sequestros internacionais de crianças e adolescentes na época,
logo, todos os aeroportos da Europa já estavam em alerta. Ficamos três meses
sem ter notícias dele. Tempos depois, ouvi uma conversa de Baba ao telefone,
provavelmente com algum delegado ou chefe de polícia. Haviam localizado uma
pista. Um jovem desacompanhado de aproximadamente dezesseis anos havia feito
conexão em Amsterdã com destino a Istambul, no dia seguinte ao desaparecimento
do Timmy. As características físicas eram compatíveis. Loiro, alto, olhos de um
castanho claríssimo, portava apenas uma mochila. Mais alguns dias se passaram e
a suspeita se confirmou. Era Timur. Fora localizado pois havia falsificado a
assinatura de Baba no termo de responsabilidade para que pudesse viajar
sozinho.
— Vocês são loucos? Por que ainda não foram visita-lo, trazê-lo de volta?
— Ele não quer nos ver.
Seus olhos
estão marejados. Ela esfrega o nariz.
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