Pontos Finais - IV/VIII
Na única vez
que entrei no apartamento dos Ösdemir,
vi uma típica foto de família pendurada na parede cor de caramelo do corredor.
O porta-retratos pendia solitário em um prego enferrujado. Uma mulher de meia
idade, morena, com os olhos cor de mel voltados para o filho mais velho, um
adolescente de olhos verdes e cabelo castanho. Deduzi ser Arslan. Havia uma
menina de grandes olhos castanhos e cabelo negro, metida em um vestido azul celeste.
Estava sentada no colo de um homem rosado de olhos azuis. No canto da foto,
quase camuflado entre os móveis do fundo do enquadramento, eu o vi. Um
rapazinho com seus doze ou treze anos,
loiríssimo. Herdara os olhos melados de Aysel. Era a última foto de Timur junto
da família.
— Vai ficar tudo bem. — eu emendo — tente não pensar nessas coisas.
— Vamos pra outro lugar? Agora eu é quem quer
uma cerveja...
— Como quiser, Frau.
A garçonete
entediada traz a conta. Com alguns euros a menos, saímos em direção ao bar, próximo ao Tausend. Conforme as garrafas esvaziam, Hannah enche-se de coragem
e desata a falar sobre tudo e todos. Coragem de bêbado. Ou “Coragem de
Holandês”, dizem na Inglaterra.
— Acho melhor irmos embora...
— Mas eu mal comecei a beber ainda!
—Já foram cinco garrafas. Dois dias seguidos
já é demais. Não sei como sua mãe ainda não percebeu.
— HAAAAAAAAAAAAAAAANS CHATOOOOOOOOOOOO. —
ela levanta cambaleando e cai por cima do meu ombro. Começa a balbuciar alguma
lorota ininteligível em turco.
Paramos
frente a frente. Com um palmo de distância entre nossos narizes, ela parece
ficar subitamente sóbria. Segundos que pareciam horas se arrastaram.
— Desculpe. Sabe que eu não posso.
—Esquece essa “ezik”! Ela não vai voltar! —
Hannah começa a falar muito alto. Os garçons nos observam a uma distância
segura, caso copos comecem a voar. Tudo pode acontecer nos bares de Berlim.
— Vamos pra casa. — pego-a pelo braço e
ela aceita, relutante.
— “Oh, Agneta! Onde está você? Por quê não
volta para mim? Oh, Agneta!”
— Não é engraçado, Hannah.
— Ela foi embora, Hans. E ela nem ao menos te
explicou o porquê.
— A mãe voltou pra Reykjavík e ela teve de ir
junto.
— E te largou aqui? Preso em um relacionamento
à distância? Por Deus, ela está na Islândia! Não é como se pudéssemos pegar um
U-Bahn e bater na porta da casa dela!
— Só te perdoo por que está bêbada. Sei que
não é tão má assim quando está sóbria.
Novamente,
Hannah vai pra casa. Luz acende, luz apaga. Um solitário Johann caminha pelas
ruas dos arredores de Berlim. O ritual de chegada sorrateira repete-se, desta
vez comigo. Luz acende, luz apaga. Entro em silêncio e ouço alguém tagarelar em
algum lugar do apartamento:
— Johann chegando tarde — cantarolou a voz
misteriosa — Tomando conta da menina
turca de novo?
— Mãe, você tem que se decidir. Ou você é nazi
ou é liberal. As duas coisas não dá.
Finalmente a
dona da voz se revela, rindo. Astrid Schulz, quarenta e nove anos, dona de
casa. Cabelo preto tingido com um palmo da raiz loira dourada já aparente. Saltos
plataforma de dar inveja a Nina Hagen.
— É sério. Como você consegue rir disso?
— Eu não sei de coisa alguma. Você e essa tal
menina...
— Hannah.
— Que seja. O que eu estou tentando dizer é:
esqueça.
— Não sei do que está falando. — dou um
passo em direção ao quarto, na esperança de fugir do interrogatório semanal
sobre a “turca mestiça”.
— Johann. — ela me segura e diz — Essa é a última vez que eu vou dizer isso.
Aquele Müller...
— O quê
tem ele?
— Ele se acha melhor que nós. É isso. Vive
comentando como o “moleque dos Schulz” é abusado e inconveniente.
— Ele só tem ciúmes da Hannah, só isso.
— Não é só isso. Ele encontrou com seu pai na
rua ontem...
Droga.
—... disse para que conversasse com você, que
lhe aconselhasse.
— Não preciso de conselhos. — afastei-me,
furioso. Evitando o inevitável.
— Jo...
A porta do meu
quarto bate. O barulho parece estremecer toda a estrutura do prédio.
Já
é tarde. Acabo dormindo.
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