Pontos Finais - V/VIII
Meia-noite e
meia.
Droga.
—Alô?
— Johann?
— Quem é?
— Você estava dormindo? Caramba, eu me esqueço
dessas coisas de “fuso horário”...
— Agnetha?
— É sim, bobo. Liguei pra saber como está.
— Estou bem. Faz um tempo desde que você não
dá notícias.
— Estou ocupada com a universidade. As
nevascas não me deixam fazer coisa alguma, praticamente.
— Islândia e suas belezas naturais.
— Vou deixar você voltar a dormir. Nos falamos
depois.
— Está bem — estava cansado demais para
discordar dela.
— Bless bless.
Esmago algumas
folhas avermelhadas com a ponta da bota. O chão parece um enorme catálogo de
tintas em tons quentes e escuros.
— Sinto muito, Hans.
Era a primeira
vez que a Hannah falava sobre o ocorrido. Demorou demais, em minha opinião. Já
faz três semanas desde que recebi a carta.
— Bem, tente ver o lado bom. Isso revela algo
fantástico!
— O quê?
— Você é a Hannahdamus! Podemos ganhar milhões
adivinhando resultados da loteria. Aí, esquecemos de vez esse papo de ficar
desenhando circuitos elétricos pra ganhar a vida.
Ela ri. É o
primeiro sorriso que vejo em semanas. Acho que seus pais estão se divorciando.
Não toco no assunto.
— Vamos para casa?
— Vamos sim.
Caminhamos
pela avenida, passos lentos, cada qual com sua dor. Está tocando Bach em uma loja de discos de vinil.
Hannah abre a boca pra falar e eu sou mais rápido na pergunta.
— “Não vai voltar a tocar, Hans?”.
— Sem graça.
— Já disse que nem penso na possibilidade.
— Mas você é um artista! Não pode se forçar a
fazer algo que não quer só pra fugir do Schulz.
— Posso e vou.
— Ele não deve ser tão ruim assim. Imagine a
sorte! Ter um pai violinista!
— Meu pai é um maníaco com uma batuta na mão.
— Coitado dele.
Siegfried Shulz, 53 anos.
Praticamente concebido e nascido dentro da Sinfônica de Berlim. Mãe sueca, de
Gotemburgo, pai alemão, de Berlim Ocidental. Maestro titular e violinista Spalla nas horas vagas. Estatura
mediana, loiro, olhos azuis. Padrão.
— Quer ser filha dele em meu lugar?
— Seu pai? Pai de uma turca? Acho que não
estamos falando do mesmo maníaco.
Tento não
parecer incomodado pelo que ela diz. É como dizem. Só é ofensivo se você se
surpreender. Eu conheço bem o pai que tenho. Já ouvi coisas piores a respeito
dele.
O
prédio cinquenta e dois se aproxima. Hannah começa a ficar inquieta. Assim que
paramos defronte seu apartamento, ela dispara:
— Preciso de ajuda.
Finalmente.
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