Santo de Casa - IV/V
— Fumando sem tomar café? — Ele me
repreendeu enquanto mexia no bule.
— Bom dia para você também, passarinho.
— Comprei pão de canela aqui embaixo. Sorte a
sua morar em cima de uma padaria.
— Eu não aguento mais. Esse cheiro de trigo me
embrulha o estômago.
Peguei a
bolsa de couro no cabideiro e comecei a preenchê-la com os muitos volumes que
precisaria na aula daquele dia.
— Não vai comer?
— Vou levar para comer no caminho — disse,
pegando um dos pãezinhos.
— Está bem. Vou sair daqui uns quinze minutos.
— Feito.
“Não é de
bom tom chegar junto assim. Alguém vai acabar notando e comentando. Você vai
primeiro, e eu, logo em seguida.” Sempre obedeci sem questionar. Afinal, ele
tinha razão. E eu, como a “mulher” da história, sempre contaria com uma
reputação mais infame que a dele por conta de certos boatos. Após tantos anos
desde aquelas lâmpadas por trocar, ainda mantenho um mar de dúvidas sobre
Pardal. Por vezes, fazia parecer que eu nunca o conheci, nunca soube quem era
de fato. Continuava sendo Pardal, a folclórica figura universitária assistente.
Como sempre, eu saía do
apartamento antigo, descia a ladeira e olhava para a janela. Se aberta, queria
dizer que ele ainda não tomara café e provavelmente estava pensando no tempo e
espaço, com a cabeça escorada no arco da porta da cozinha. Se fechada, queria
dizer que estava no banho. Naquele dia, estava aberta. Fitei as vidraças por
uns bons dez ou doze minutos. Puxei o cós da saia de brim e continuei descendo
em direção aos trilhos.
Ele pegou a fotografia amarelada
pelas bordas, olhou-a em silêncio durante um longo tempo.
— Nem sou de falar essas coisas, mas, seu pai
definitivamente era um homem bonito.
Ele virou a
foto. No verso, que um dia foi branco, uma caligrafia nervosa desenhada.
“Павел и Ирина”, “Pavel e Irina”.
— Era uma moça pobre, queria estudar, ter
família. Fugiu do “interior” que, novamente, não era tão interior assim, e veio
para a “periferia” do Rio. Arrumou um emprego na mesma fábrica de tecido que
meu pai. Não o conhecia, claro, mas todos falavam do “alemão” bonito que lá
trabalhava. Acabou ficando próxima dele. Meu pai, que nunca se fez de rogado
pra nada, jogou a proposta no colo da pobre. Era só me registrar como filha e
pronto, todos os problemas dela e dele teriam fim.
— Bem, mas eles viviam como um “casal”? —
Juro tê-lo visto corando levemente. Juro.
— Não sei. Amália dormia no meu quarto, e meu
pai, no dele. Às vezes, eu acordava no meio da noite e ela não estava lá. Se
estava com ele, não sei.
Ele pareceu ligeiramente
constrangido. Pigarreou e enfiou a mão no bolso de maneira estranhamente solene.
— Te trouxe algo.
— Não precisava.
— Claro que precisava. Você não pode andar por
aí desprotegida.
Torci para que fosse tudo,
menos uma arma.
- Não sei em quê você acredita, se é que acredita em algo. Mas, quero que fique com isso, para se lembrar de mim e para que “ele” a proteja.
Победоносец.
São Jorge.
O misterioso artigo de proteção pessoal era uma estátua de São Jorge.
Ri.
— Não gostou?
— Adorei. Meu pai sempre falava dele, sabe?
— Seu pai? Falava de São Jorge?
— Sim. Por que o espanto? São Jorge é o padroeiro da Rússia.
— Que coincidência.
— Pois é — concordei, alisando a estatueta — não sabia que você era religioso.
— Nem eu.
— Viu o Pardal hoje? O ar-condicionado da minha sala está produzindo mais barulho que frio.
Congelei por instinto. Sempre que alguém falava nele próximo aos meus ouvidos, meu corpo travava antes que minha boca pudesse dizer algo.
— Não o vi hoje, Vlad.
— Acho que tem umas lâmpadas queimadas no hall também. Se encontrar com ele, peça para me procurar, por favor.
— Com toda a certeza.
— Por consequência, chamou-se Perestroika — uma lâmpada piscava irritantemente sobre minha cabeça — foi uma das políticas introduzidas juntamente com a Glasnost.
Estava, infelizmente, no décimo andar. Pior cena para um acrófobo.
Fez-se um estrondo surdo e seco lá embaixo. Não, de novo não. T odos correram para as janelas.
— Meu Deus! — a maioria exclamava.
Alguns começaram a chorar, outros taparam as bocas com as mãos, em espanto. Caminhei até a janela. Um século inteiro pareceu passar dentro do tempo que os meus olhos levaram para focalizar o chão.
Não.
Não, não, não, não, não, não, não.
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