Santo de Casa - III/V



            — Mamãe!

           — Mama!

           — Mamãe!

           — Mama! Mama! Mama!

            Cena velha, já aviso. Muitos mistérios pleiteavam o surgimento de nossa vida no Rio. Meu pai não falava muito sobre o assunto. Eu era um bebê, vocês sabem. Não me lembrava de minha primeira infância. O pouco que sabia, já aos doze anos, Amália havia me contado. Sob protesto, devo acrescentar.

Por que? Me conte!

Por que o quê? Vá procurar o que fazer, guria!

Por que toda vez que ele chega bêbado, fica me chamando desses nomes?

Pergunte a ele! Como eu vou saber? E eu lá falo a língua de vocês?

“Ira, Irinka, Irinushka(...)”


Eu nasci na Rússia.

Nunca o vi tão confuso.

Eu não conheço minha mãe — continuei — e também não sei onde nasci. Kaliningrado, talvez. Meu pai nasceu lá.

Mas ele...

Nunca falou sobre isso. Falou apenas o necessário para a Amália. Eles viveram durante vinte anos numa relação de um marginal mutualismo genuíno. Ela fingia que era minha mãe e meu pai fingia que não tinha coisa alguma a esconder do resto da humanidade.

Você nasceu em qual ano?

1960.

E então...?

Meu pai decidiu que era uma boa ideia trocar a própria família pela “Revolução”.

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Pavel?

            Meu pai estava deitado no sofá, cochilando. Havíamos acabado de almoçar.

Quem? — Ele abriu apenas um dos olhos incrivelmente azuis que se camuflavam por detrás das pálpebras.

Pedro? — Amália corrigiu. Foi o primeiro deslize que notei. Tinha apenas sete anos na época, mas já estava envolvida em mais coisas do que uma criança de sete anos deveria estar.

“Em casa, me chame de papa, entendeu? Na rua, é papai.”

            Entre “papas” e “papais”, Eles sustentaram uma continental mentira por mais de quinze anos. Meu próprio pai nunca me explicou nada. Descobri acidentalmente seu nome 
numa tarde em que estava procurando papéis para pintar. Peguei um pequeno bloco e junto dele, veio um documento ou algo do tipo, continha uma foto do meu pai com algo embolado escrito ao lado. Só consegui distinguir “Pavel”, escrito entre parênteses, ao lado da foto de seu rosto rosado. Não tive tempo de ler o resto.

Aurélia! — Amália, surgida sabe Deus de onde, arrancou o tal papel da minha mão e me deu um tapa — Nunca mais mexa nas coisas do seu pai, entendeu? Nunca mais!

            Passado o choro, acabei esquecendo. Felina memória infantil.




E foi ela quem te contou a verdade? Tudo que aconteceu com seu pai?

Bem, mal conseguíamos enviar cartas naquela época. Quando eu nasci, meu pai já tinha seus vinte e cinco anos, pelas minhas contas. Fazia parte de algum levante político, contra a vontade de minha mãe biológica, claro. Isso eu sabia. Ele vivia resmungando sobre essas coisas quando bebia. Sempre em russo. A barreira idiomática criava uma privacidade estranha para nós dois. Protegia a Amália de certos comentários irresponsáveis.

Qual era o nome da sua mãe?

Também não sei — encarei a foto ao longe — mas, ele ficava falando de uma tal “Masha”. Bêbado, sempre bêbado. — reiterei — Pode ser minha mãe, minha avó, alguma tia ou namorada da juventude dele. Quem sabe?

Nossa... — parecia impressionado com a complexidade da minha “jornada”. Ri por dentro.

Ele veio ao Brasil como “contato de interesse”. Fugiu para a Alemanha e conseguiu documentos falsos. Depois, não foi tão difícil vir pra cá. Com um bebê, dizia estar fugindo de “perseguição”.

E sua mãe...

Ela nunca soube. Ele já estava com tudo acertado. Acordou, tomou café da manhã como em um dia normal. Tomou-me no colo, saiu e desapareceu. Tão simples quanto a explicação soa.
            Pardal cruzou as pernas no sofá. Sujou a colcha de crochê com a terra dos mocassins.

Com o tempo, surgiu outro problema: tinha de arrumar alguém para cuidar da “Irinushka”. Acabou desistindo das causas políticas. Foi então que ganhei uma mãe. Moramos durante anos no “interior” do estado, que não era tão interior assim. Meu pai juntou um bom dinheiro durante a vida e me deixou esse “apertamento”, como dizia a minha “mãe” — fiz um gesto abrangente com o braço direito.





Espero que goste de doces.

Fiz suspense acerca do “bolo”. Pedi para que fechasse os olhos e só abrisse ao meu comando.

Já.

Parece gostoso — disse, passando o dedo pela cobertura — uma das finas iguarias russas?

            Ah, esse sarcasmo pedante.

Meu pai fazia pra nós. “Bolo de ninho de pássaro”.

Um ninho para um Pardal — ele observou, rindo.

Mais um de minha parte, dentre tantos que você já possui.

Concordo.





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