Santo de Casa - II/V
Pardal agia com uma inocência (ou
ignorância, nunca saberei) quase cênica quanto às minhas conversas acerca dos
assuntos da faculdade.
“Por conta da crise de vinte e nove (...)”
“Quando?”
“Os reacionários (...)”
“Que reação?”
“Desde o governo Gorbatchov (...)”
“Saúde.”
Estava
especialmente espirituoso naquele dia. Quando levantei para pegar mais chá na
cozinha, ele veio atrás.
— Erva-doce ou Capim-limão?
— O que a senhora estiver disposta a me prover.
“Senhora”
aqui, “Senhora” acolá. Ele podia ter lido outro livro, pelo menos. Dei-lhe a
xícara morna e o perfume das ervas espalhou-se pela cozinha. Ele encarou o
conteúdo quente por alguns segundos e disse:
— Tenho que ir.
— Mas já? Você acabou de chegar.
— Eu sei, mas te trouxe um presente de “consolamento”.
Consolação, corrigi mentalmente. Foi-se
o tempo em que eu realmente o corrigia. Era cheio de um jeito solene que fazia
parecer que a iliterata era eu. Enfiou a mão no bolso e tirou um papel marcado
com caneta.
— Tome.
— Isso seria... — encarei o papel, inerte.
— É um vale-presente. É só passar na Travessa. Seu
aniversário foi semana passada.
— Mas...
— Eu vi no calendário do quarto.
— Detesto fazer aniversário.
— Eu sei que não é grande coisa — ele
cortou — mas espero que compre algo que
goste lá.
Pegou o casaco atrás da porta e
saiu. Estava terrivelmente frio e ainda estávamos em Maio. Na Guanabara, quase
neve nas peles tostadas pelo verão Fluminense. Mudanças bruscas de temperatura
afetavam o humor dele. O perdoei pela grosseria. Silenciosamente, claro.
A Academia
é um lugar de vaidades, meus caros leitores.
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— Quem é essa moça? — apontou para o outro lado da sala, o
porta-retratos empoeirado.
— Minha mãe, Amália.
— Imagino que o homem grande ao lado dela seja o seu pai.
— Imaginou certo.
— Você é a cara do seu pai.
— Todos diziam isso quando eu era criança.
— Mas — Ò, céus. Essa conversa de novo — sua mãe só te carregou mesmo. Vocês não se parecem em nada.
Pardal e sua grandiosíssima sensibilidade.
— Ela não é minha mãe de verdade.
— Ah, sua madrasta.
— Nem perto.
Encarei o
vazio por um tempo. Ele continuou me olhando, esperando uma explicação. Detestava essas situações.
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