Santo de Casa - I/V


     Pascoal de Almeida Cesário morreu numa tarde de quarta-feira, no dia vinte e seis de outubro de mil novecentos e noventa e quatro, aos trinta e um anos. Era dia de repor o estoque de disjuntores do almoxarifado.

     Aurélia Valentina Alencar, nascida Irina Pavlovna, morreu numa manhã de terça-feira, no dia dez de dezembro de dois mil e quatro, aos quarenta e quatro anos. Era dia de entregar as notas finais aos estudantes.


Minha mãe era casada com a pátria socialista (...)”

Olhei para o lado. Alguns riam, cochichavam, outros olhavam para a tela. Eu podia ver os espectros coloridos refletidos em seus olhos.

No meio da noite, a multidão caminhava em direção ao muro, gritando palavras de ordem (...)”

           Alguém passou pelo corredor, apressado. Algum reboliço estava acontecendo no andar de cima. Houve um pequeno momento de silêncio e um grande baque seco, algo acertou o chão. Os alunos correram para as janelas. Gritaria geral.

“Aquela é a minha mãe, seu imbecil!”

            — Professora? A senhora está bem?

            — Socorro! Segurem-na! Chamem alguém!

            — Professo...

            Fade out.


             

            — Tem algumas lâmpadas piscando aqui e ali. Os alunos reclamam, dizem ficar com dor de cabeça. E bem, você sabe como são ardilosos. Usam de toda desculpa possível para não estudar.

            — Entendi. Trocarei hoje mesmo.

            — Agradecida.
   
         Peguei a bolsa de couro e alguns livros que jaziam sobre a mesa, fechados. Quando olhei, ele já havia saído da sala. Torci para que aquela promessa de conserto fosse verdadeira. Eu mesma já estava ficando com terríveis dores de cabeça durante a aula.

            — Professora! — Ah, Maurício. O gazeteiro.

            — Que milagre! Você quase me faz pensar que existe um Deus que o fez vir aqui. O que me brinda com a honra de sua presença?

            — Não precisa ser assim também, fessora.

            — Você apareceu na minha aula duas vezes neste semestre. E estamos em maio.

            — É que minha avó morreu...

       — E você está de luto desde o ano passado? Você contou essa história para o Vlad, de pedagogia. E no mês seguinte, para a Carola, de Didática. E agora, pra mim. Quantas avós você tem, afinal?
            “Mau-mau”(alcunha que foi-lhe concedida pelos colegas de classe) olhou para baixo, encarando os sapatos. Esse coração de quem fora ensinada a perdoar...

            — Quero um relatório para segunda. Fale sobre o Czar, Gorbatchov, qualquer coisa. Não posso mais ficar fingindo que não sei da sua imprudência acadêmica. Essa é sua última chance.

Um sorriso brotou em seus lábios e ele rapidamente fez uma continência, com o rosto sério e olhar solene, habitual gesto zombeteiro que sua turma orgulhosamente cultivava em relação à mim. 

Chispa daqui!

O garoto desapareceu pela porta num raio. Saí da faculdade e continuei caminhando até a estação de metrô, e de lá, até a estação do bondinho, que estava meia hora atrasado naquele dia.



Dedicado à Carolainne da Roza, a precursora.

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