Parada Silva e Souza

             É um pacato dia de sol. Nicola desce as escadarias da estação apinhada de gente. Parece um dia como qualquer outro na vida do proletariado. Passa pelas roletas, serelepe e desavisado. “Há de tomar o rumo da ladeira”, alguns dizem. “Acho que vai encontrar-se com Gioconda”, algum outro coitado resmunga. Mas não é nada disso que Nicola quer.
                O pobre incauto esbarra nos vendedores ambulantes e em seus sacos cheios de doces e chocolates de procedência mais que duvidosa. Logo põe-se de pé e continua a percorrer as ruas principais do bairro. Passa por seus compadres, é cumprimentado. Conhecido por todos da área.
                Para defronte um portão acinzentado, vê-se flores e trepadeiras transbordando sobre o muro. Bate algumas vezes e é recepcionado por um senhor já de idade, com uma proeminente barriga.

                — Está atrasado! Que houve contigo?
                O trem é que atrasou, doutor Filippo!
             Tu sempre com essa história de trem atrasado. Faz melhor na próxima vez, tu desces e vem andando!
                Sim, senhor!

                Passou por entre as plantas e flores do quintal, deu de cara com Gioconda. Trajada em um vestido de organza amarelo. Linda, uma visão, como de costume. “Pura como água e sabão”, dizia o moço da venda.

                — Nico!
                — Minha flor de cacto. Ainda mais de amarelo!
                — E isso é um elogio?
                — Claro que é. A beleza da flor e o advento dos espinhos.
                Tu e estas tuas falinhas mansas...
               
                Faz menção de beijá-lo e Filippo aparece. Separam-se com um susto. Logo adentram a casa, colonial, com apliques em pedras trabalhadas. Na parede, fotos da família Tolezzano. Benta está na cozinha, debruçada sobre as panelas, como sempre.
            
                — Benta! E esse almoço que não sai?
                Quase pronto, quase pronto.

                Filippo faz com que Gioconda fique na cozinha, cortando cebolas. Isto feito, leva Nicola para a biblioteca no segundo andar. Mas não é nada disso que Nicola quer.

                  — O que tu fazes da vida? — pergunta, sem cerimônias.
           — Sou jornalista — O que não era verdade, na verdade. O pobre apenas trabalhava entregando jornais.
                  — E o que tu queres com minha Donna?
                  Eu a tenho em muita estima, doutor Filippo...
                  Quero saber dos planos. Quando será o casório?
                
     “Casório?”, pensa Nicola. “Mas nos mal nos conhecemos!”. Na ausência do que dizer, não há muitas opções. Poderia fingir um desmaio, um ataque do coração ou simplesmente fingir uma vontade incontrolável de ir ao banheiro. O coitado achou a última opção a mais convincente. Mas não era nada disso que Nicola queria.
               
                  — Doutor Filippo, se importa se eu for ao toucador? Volto em um minuto.
                  É na segunda porta à esquerda, ao lado do quadro.
       
         Assustado, percorre o corredor em segundos e entra no banheiro. Olha-se no espelho e tenta pensar em algo. Vítima do nervosismo, Nicolla acaba com a mente mais vazia que antes. Nada lhe ocorre. Sai do banheiro em silêncio, ouve Gioconda e Benta conversando nervosamente no andar de baixo. Filippo parece ter colocado algum disco para tocar na vitrola. Ao fim do corredor, uma porta. A última e mais evasiva saída para Nico.
                Felino, anda até a porta nas pontas dos pés, desce pela antiga escada de pedra, coberta de musgo pelo tempo. Foge de todos os ruídos, menos o do portão de lata, que fecha com um sonoro estrondo. Desce a Francisco Manuel a toda, como água que transborda de um balde. Entra na estação, desesperado. Olha em volta em busca de Filippo, querendo recobrar a moral da filha. Todos os rostos na multidão apinhada na plataforma se parecem com o do contador italiano.
E agora?” pensa Nicola, desesperado. “O que direi pra minha mama? Filippo vai ligar e contar tudo, estou perdido!”
O trem desponta no horizonte e o burburinho apressado começa.

Pega ladrão!”, grita uma senhorinha com seus setenta e tantos, no meio da multidão aglomerada pela plataforma. As pessoas começam a se dispersar, os guardas surgem, com seus inofensivos cassetetes. Alcançam o trombadinha que a havia roubado e a bolsa da idosa torna-se um cabo de guerra entre a autoridade e marginal. Meu, seu, meu, seu, meu, seu. Eis que o produto do roubo finalmente escolhe em qual dos lados quer ficar. O guarda, junto com o peso largado pelo ladrão, sai cambaleando pela plataforma até dar um encontrão com Nicola.
            Os gritos de horror das mulheres são os meus favoritos, rebelde leitor! Numa fração de segundo, não havia mais alianças, vestido e aqueles bolos pesadamente açucarados. Nem mesmo aquele choro teatral ou a tão sonhada chuva de arroz. Não haveria nem mesmo os bem-casados ou sequer o sonho de docinhos.
           Não havia mais Filippo nem Benta. Nem mesmo a ladeira de Benfica, companheira fiel de suas bebedeiras às escondidas.
                    
                       “Salvo pelo gongo!”, o meu intrépido e mórbido leitor deve estar pensando.
                       
                        Sem casamento, sem Nicola, agora com os peitos nos trilhos.
                        Sem Gioconda.
                        Afinal, não era nada disso que Nicola queria.

                        
                        Não é?



            
             (Isabelle Iwamura, Fevereiro de 2016)


Comentários

Postagens mais visitadas